Alessandra El Far (Doutoranda em Antropologia/USP)
Rose Satiko Gitirana Hikiji (Mestranda em Antropologia/USP)
Nos dias 27 e 28 de abril, os departamentos de Antropologia,
Ciência Política e Filosofia da FFLCH em conjunto com o Instituto de Estudos
Avançados (IEA) e o Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP
promoveram o simpósio "Visões de Ciência: encontros com Sokal e Bricmont".
Os físicos Alan Sokal, professor da New York University, EUA, e Jean Bricmont,
da Université Catholique de Louvain, Bélgica, trouxeram ao Brasil sua
crítica ao que consideram "imposturas intelectuais" cometidas por vários
humanistas franceses que teriam empregado de forma inadequada e abusiva,
em suas obras, conceitos das ciências exatas.
A barulhenta incursão destes dois cientistas nas Humanidades teve início
em abril de 1996, quando a
Social Text,
uma conceituada revista norte-americana
na área dos Estudos Culturais (Cultural Studies), aceitou e publicou o
artigo de Sokal intitulado
"Transgressing the Boundaries: Toward a Transformative
Hermeneutics of Quantum Gravity" (Transgredindo Fronteiras: Em direção
a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica). Nesse artigo,
o autor constrói um texto repleto de argumentações infundadas e sem sentido,
usando incorretamente conceitos da física e da matemática na tentativa
de elucidar temas sociológicos ou filosóficos. A intenção do autor foi
colocar em questão não somente a falta de rigor dos editores da revista,
mas principalmente, a de toda uma corrente do pensamento humanista, em
especial aquela baseada no relativismo cognitivo que propõe pensar as
teorias científicas e a realidade como construções sociais.
A paródia foi desmascarada com a publicação do artigo
"A Physicist Experiments
with Cultural Studies" (Um Físico Experimenta com os Estudos Culturais),
na edição de maio/junho de 1996 da revista
Lingua Franca,
no qual Sokal
detalha as incoerências existentes no artigo da Social Text e explica
algumas de suas motivações em evidenciar os usos indiscriminados de "nonsense"
por alguns intelectuais das humanidades.
A repercussão do episódio surpreendeu Sokal e a própria comunidade acadêmica
ao ganhar a primeira página de alguns dos principais periódicos norte-americanos
e estrangeiros. Um ano depois, o físico norte-americano decidiu dar continuidade
a esse debate, convidando Jean Bricmont a escrever com ele o livro
Impostures Intellectuelles
(Paris, Éditions Odile Jacob, 1997),
no qual focalizam trechos
de obras de Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour,
Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio com o
intuito de demonstrar alguns tipos recorrentes de abusos na utilização
de conceitos e termos provenientes das ciências físico-matemáticas. Entre
estas recorrências estariam: 1) usar de terminologias científicas (ou
aparentemente científicas) sem conhecimento de seu significado; 2) importar
noções das ciências exatas para as ciências humanas sem a preocupação
com uma justificação empírica ou conceitual; 3) exibir uma erudição superficial
ao apresentar termos especializados ao leitor "leigo", em um contexto
no qual eles não têm pertinência alguma; 4) manipular frases desprovidas
de sentido e se deixar levar por jogos de linguagem. A partir desses critérios,
os autores, inicialmente, listam uma série de imposturas nas obras em
questão e, em seguida, partem para uma crítica ao relativismo cognitivo.
O amplo horizonte intelectual atingido pela crítica dos autores - que
vai da psicanálise à filosofia, passando pela lingüística e ciências sociais
- tem proporcionado debates que atraem pesquisadores de várias áreas.
O simpósio realizado na USP reuniu em torno dos autores - cujas conferências
abriram e fecharam o evento - uma diversidade de temas, tratados em mesas
multidisciplinares.
O simpósio foi dividido em quatro blocos: o debate em torno do livro propriamente
dito, a questão do relativismo cultural e cognitivo, a metodologia nas
ciências naturais e humanas e as relações entre ciência, educação e poder.
Além dos autores, participaram os filósofos
Ricardo Terra (USP), Marilena Chauí (USP), Caetano Plastino (USP),
Andréa Loparic (USP) e Jean-Yves Béziau (LNCC/RJ),
os cientistas sociais Mauro
Barbosa de Almeida (Antropologia/Unicamp), Otávio Velho (Antropologia/UFRJ),
Sérgio Micelli (Sociologia/USP), Simon Schwartzman (IBGE/RJ), Paula Monteiro
(Antropologia/USP), Márcio Silva (Antropologia/USP), Gabriel Cohn (Ciência
Política/USP), Renato Lessa (Ciência Política/Iuperj),
Jesus de Paula Assis (Nupes/USP), os educadores Nélio
Bizzo e Myriam Krasilchik (Educação/USP), os teóricos da comunicação Francisco
Dória (Comunicação/UFRJ) e Leonardo Moledo (Comunicação/Univ. Buenos Aires),
a professora do departamento de Letras Modernas da USP Victória Rubén,
os físicos Antonio T. Piza (IF/USP) e Carlos Escobar (IF/Unicamp), o psicólogo
César Ades (Psicologia/USP).
Dos vários temas abordados nos dois dias do evento, destacamos, na entrevista
que realizamos com Sokal, no dia 29 de abril, no IME, aqueles que despertaram
maior interesse junto aos antropólogos e demais cientistas sociais presentes
no simpósio, seja como debatedores, palestrantes ou ouvintes. Apesar
de o livro Impostures Intellectuelles não ter como alvo direto nenhum antropólogo,
várias de suas críticas atingem, indiretamente, temas sempre em pauta
na Antropologia, como o relativismo cultural, as implicações políticas
do conhecimento científico e a pós-modernidade. Permeando toda a discussão,
fica a pergunta pelas reais possibilidades do diálogo "entre culturas".
Entrevista com Alan Sokal, realizada em 29 de
abril de 1998, no IME.
[Entrevista conduzida com perguntas em português e respostas em
espanhol. Tradução realizada pelas entrevistadoras
e revista pelo entrevistado.]
Alessandra/Rose: Gostaríamos de iniciar a entrevista com um
breve histórico sobre a "polêmica Sokal-Bricmont". Quais as motivações
científicas, políticas ou pessoais que levaram o senhor e Jean Bricmont
a questionarem o que consideram o uso abusivo de terminologia das ciências
exatas por cientistas humanos, e criticarem, de forma mais abrangente,
o relativismo pós-moderno? E qual o contato com as ciências humanas que
os senhores tinham até então?
Alan Sokal: Creio que nós dois sempre tivemos interesse pela filosofia
da ciência, pelas ciências sociais e, sobretudo, pela política. Eu militei
por solidariedade com a Nicarágua, nos verões de 1986, 87 e 88, ensinando
matemática na Universidade Nacional de Nicarágua como voluntário. Nós
dois temos muito interesse em questões para além da física, em particular
no que diz respeito a esta crescente tendência do relativismo cognitivo
em certos meios de ciências sociais e letras, nos Estados Unidos. Mas,
eu não me sentia competente em participar publicamente nesse debate, porque
sou um físico, e não sociólogo ou antropólogo. No entanto, quando me dei
conta de que essas idéias relativistas estavam sendo aplicadas não somente
nas ciências sociais, mas também, na filosofia e sociologia das ciências
naturais, me senti mais à vontade em intervir. Inteirei-me destas questões
através de um livro escrito por um matemático, Norman Levitt, e um biólogo,
Paul R. Gross, que se chama
Higher Superstition: The Academic Left and
its Quarrels With Science,
publicado nos Estados Unidos em 1994. A primeira
coisa que pensei quando vi uma referência sobre esse livro foi: "oh, não!
Será mais uma publicação sobre como os subversivos marxistas estão se
espalhando pelas universidades, lavando o cérebro de nossa juventude
etcetera ...". E a segunda coisa foi: "a esquerda acadêmica e suas disputas
com a ciência" soa estranho, pois eu me considero um acadêmico de esquerda,
e nem por isso tenho alguma disputa com a ciência! Para falar a verdade,
eu não sabia que a esquerda acadêmica tinha uma disputa com a ciência.
Depois de ler o livro eu me inteirei dessa corrente de uma parte da sociologia
da ciência e de pessoas ligadas aos Cultural Studies. Em comum, fazem
muitas críticas às ciências, baseadas em má filosofia ou em uma filosofia
muito confusa, sem conhecimento a propósito do conteúdo da ciência que
pretendem criticar.
A primeira coisa que fiz após ler o livro foi correr
à biblioteca e buscar os livros e artigos que Gross e Levitt citaram para
ver se eles os haviam tratado de maneira justa, ou se haviam distorcido
o sentido dos textos. Me dei conta de que, em 80% dos casos, eles haviam
sido completamente justos, que os textos eram tão ruins como diziam. Em
algumas semanas de investigação na biblioteca, buscando referências, eu
consegui compilar um dossiê bastante grande de disparates escritos não
somente por essa corrente norte-americana, mas também por grandes intelectuais
franceses, como Derrida, Lacan, Irigaray, Deleuze, Guattari, Virilio,
e percebi neste momento que eu poderia fazer uma intervenção útil nesse
debate. Agora eu poderia tocar em um ponto no qual eu me sentia competente.
Em seguida pensei que se eu escrevesse um artigo direto, normal, para
criticar esses textos, esse artigo cairia em um buraco negro. Muitas outras
pessoas das ciências sociais haviam criticado o relativismo cognitivo,
o jargão obscurantista do discurso pós-moderno, mas essas críticas não
tiveram efeito. Pensei que seria mais divertido e mais útil, ao invés
de criticar, escrever um artigo elogiando esses textos. Então, tive a
idéia de escrever uma paródia, que fosse, ao mesmo tempo, um experimento
- ainda que não científico - e um embuste. Pensei que a sátira e o humor
poderiam ser armas mais potentes que um artigo normal para desbloquear
um debate que há muito tempo estava bloqueado. Assim, eu submeti o artigo
à Social Text, uma importante revista dos Cultural Studies, em novembro
de 1994. O comitê editorial aceitou o artigo em abril de 1995 e o publicou
em abril de 96. Eu não sabia, mas os editores estavam preparando justamente
um número especial da revista, chamado Science Wars (Guerra das Ciências),
para criticar Gross e Levitt. Neste cenário, meu artigo serviu como uma
luva: "um verdadeiro cientista ao nosso lado na `guerra das ciências'".
Para mim, não é uma guerra, mas um debate de idéias. Passado cerca de
um mês, eu publiquei em outra revista, a Lingua Franca, o artigo revelando
a paródia.
Minhas motivações em toda essa história foram intelectuais
e políticas. Intelectuais porque a meu ver o relativismo cognitivo partia
de idéias corretas e deslizava para idéias radicais e incorretas. E políticas,
o que é o mais importante para mim, porque essas críticas vinham de pessoas
que se diziam de esquerda. Como uma pessoa de esquerda, eu julgava ser
completamente auto-destrutivo para a esquerda norte-americana ter em mente
uma filosofia relativista. Me parece que temos que fazer afirmações a
propósito do funcionamento da sociedade, fazer propostas. E temos que
afirmar que nossa análise é melhor que as outras. Não basta dizer "minha
teoria feminista é tão boa como tua teoria machista", é necessário dizer
que é melhor e explicar por que.
A paródia foi divertidíssima. Entretanto,
o que lá foi publicado consistia apenas em uma ínfima parte do dossiê
de disparates que compilei. Meus amigos que o leram, disseram: "você agarrou
esses grandes intelectuais com a mão na massa, em flagrante delito. Deveria
tornar público esse dossiê". Mas não bastava publicar o dossiê. Era preciso
explicar ao público leigo porque se tratam de absurdos. Nesse momento,
Jean Bricmont aceitou escrever comigo os comentários. Visto que os intelectuais
criticados eram principalmente franceses, achei que deveríamos escrever
o livro em francês, e ele acabou sendo publicado em outubro de 1997.
Alessandra/Rose: Essa polêmica ganhou a primeira página do
New York Times, e também teve destaque em outros jornais estrangeiros
e brasileiros, fato incomum em se tratando de um assunto acadêmico. Como
vocês vêem o interesse da mídia nessa polêmica?
Alan Sokal: Esse affaire tem dois atos - não sei se é uma comédia ou uma
tragédia. O primeiro ato foi a paródia e suas conseqüências; aconteceu
a partir de maio de 1996, nos Estados Unidos, e acabou ganhando a primeira
página do New York Times. Para mim foi uma surpresa completa. Eu pensava
que seria um escândalo significativo em um mundo pequeno, acadêmico. Nunca
imaginei que também fosse ocupar a primeira página do
International Herald Tribune, na Europa, mais tarde a primeira página do The Observer, de Londres,
e do Le Monde, quando a polêmica finalmente chegou à França. O segundo ato
foi o lançamento do livro na França em outubro de 1997, que desencadeou
um outro escândalo, que chegou a ser a capa de um dos três semanários
mais importantes desse país, o Nouvel Observateur.
A avaliação positiva
que fazemos da repercussão do caso nos jornais norte-americanos foi o
fato de desbloquear o debate que já estava latente entre vários setores
de ciências sociais e das letras. Muita gente nas universidades tinha
tido contato com os escritos pós-modernos, com seu estilo obscuro. Então
foi bem-vinda a idéia de que alguém veio mostrar que, na verdade, "o rei
está nu". Mas também houve um aspecto negativo. Alguns comentários foram
marcados por um ar de anti-intelectualismo, e isso até em jornais supostamente
"sérios". Por exemplo, o New York Times ilustrou o absurdo do meu artigo
observando que utilizava palavras grandes como "hegemonia" e "epistemologia".
Obviamente não é isso o que torna o artigo absurdo. Essas palavras não
se ouvem habitualmente nas ruas de Nova Iorque, mas são termos filosóficos
com um sentido muito claro, são perfeitamente legítimas.
Do lado político
houve também aspectos positivos e negativos. Positivos na medida em que
o artigo abriu espaço para um debate importante na esquerda acadêmica
norte-americana, sobre o pós-estruturalismo e o relativismo. Isso é muito
importante, pois faz parte do processo de renovação intelectual da esquerda,
no qual devemos examinar criticamente e sem preconceitos toda idéia e
toda ortodoxia. O aspecto negativo é que certos ideólogos de direita aproveitaram
o caso para afirmar que a esquerda inteira é intelectualmente fraca e
confusa - não só os editores da Social Text.
No Brasil, Roberto Campos fez isso,
elogiando-me sem revelar que eu também sou de esquerda. Isso
me enojou e
respondi
com um artigo na Folha de S. Paulo, ressaltando que
80% dos comentários na imprensa de esquerda norte-americana me apoiaram.
Alessandra/Rose: Durante o seminário, o senhor expôs a necessidade
de diferenciar conhecimento e crença. Além disso, em um de seus textos
o senhor critica ironicamente os usos do conceito de "local knowledge"
("conhecimento local") pelos pós-modernos e pós-estruturalistas, defendendo
com isso uma posição específica. O sr. poderia explicar melhor essa distinção?
Alan Sokal: Para mim, assim como para a maioria dos filósofos, a palavra
"conhecimento" significa "crença verdadeira justificada", ou algo similar.
"Justificada" quer dizer que você tem boas razões para crer que é verdadeira,
que não é uma casualidade. Conhecimento é, portanto, diferente de crença,
porque a proposição deve ser verdadeira e você deve
ter boas razões para
crer que é verdadeira. É preciso não obliterar essa distinção. Um relativista
extremo poderia opinar que as palavras "verdade" e "justificada" não têm
sentido objetivo, independente de uma cultura em questão, mas teria que
justificar essa opinião. Simplesmente confundir crença com crença verdadeira
justificada, sem apresentar nenhum raciocínio, é um truque lingüístico:
equivale a aplicar a palavra "conhecimento" a algo que na realidade não é
mais que crença.
Outra confusão é com a palavra "fato". Para mim um fato
é algo que se passa no mundo, fora de nós. Outra coisa é o que sei do
fato, ou o que creio a propósito do fato. Vê-se na literatura frases ambíguas
como "a construção social dos fatos". Os fatos, pelo menos os naturais,
não são construídos socialmente, mas sim, nossas crenças a propósito desses
fatos é que são construídas socialmente. Isto me parece crucial distinguir...
Alessandra/Rose: Mas essas crenças verdadeiras justificadas
- o "conhecimento" - também não são construções sociais?
Alan Sokal: Claro! Todas as crenças são construções sociais. Todas as
teorias científicas são construções sociais, obviamente. São construções
de seres humanos, que trabalham em comunidades sociais. Mas insisto em
que as teorias científicas não são meras construções sociais. São construções
sociais das quais se pode dizer se são verdadeiras ou falsas, objetivamente.
Insisto em distinguir entre o que é e o que nós pensamos, ou nós sabemos.
Consideremos, por exemplo, as teorias sobre a origem dos povos indígenas
da América. A teoria arqueológica geralmente aceita diz que vieram em
uma migração (ou em várias) da Ásia, há 10 ou 20 mil anos aproximadamente.
As teorias de certas tribos afirmam que seus antepassados estiveram sempre
na América. Em primeiro lugar insisto que essas duas teorias não podem
ser ambas verdadeiras, é uma questão lógica. Ademais, o que aconteceu
com os seres humanos há 10 mil anos é um fato, apesar das minhas e de
suas crenças. E essas teorias fazem afirmações sobre a história humana,
não sobre as nossas crenças. Portanto, a veracidade ou falsidade dessas
teorias depende unicamente dos fatos da história humana: não é relativa
a uma cultura.
Alessandra/Rose: O sr. não concorda que as crenças de outros
povos podem ser "verdadeiras" e "justificadas" no interior da lógica própria
de suas cosmologias?
Alan Sokal: Sim, no caso de "justificada"; não, no caso de "verdadeira".
A palavra "verdadeira" significa uma certa relação entre uma afirmação
e os fatos externos a nós. Não é relativa a uma cultura. A palavra "justificada"
é diferente. Justificação é relativa às informações que se tem. Uma teoria
falsa pode até ser racional, justificada, com base no conhecimento que
se tem.
Alessandra/Rose: Provavelmente um dos maiores desafios da antropologia
tem sido entender que o que é verdadeiro para uma determinada sociedade
nem sempre é igualmente válido para as demais. Com isso, a disciplina
propõe um esforço de compreensão da elaboração de formas tão diversas
de perceber o mundo, sem restringi-las a uma avaliação dicotômica entre
verdadeiro e falso...
Alan Sokal: Aceito completamente que algumas questões podem ser importantes
para algumas culturas e não para outras. Aceito também que podemos analisar
o papel social de certas crenças sem necessariamente entrar na questão
delas serem verdadeiras ou falsas. Mas convém notar que essa questão pode ser
central para as pessoas dessa sociedade. Por exemplo, muitas tribos
indígenas da América do Norte se interessam pela origem de sua tribo.
É natural querermos saber de onde viemos, de onde vieram nossos antepassados.
Eles têm suas teorias a propósito disso. Os arqueólogos também têm as
suas teorias. Eu sustento primeiramente que duas teorias mutuamente incompatíveis
sobre os mesmos fatos não podem ser ambas verdadeiras. Não pode ser verdade
que os indígenas da América vieram da Ásia há 20 mil anos e também que
os indígenas da América sempre viveram na América. Não é possível que
as duas coisas sejam corretas. Talvez as duas teorias sejam falsas, essa
é outra possibilidade. Mas antes de abordar a questão "quem tem razão?",
o mínimo que precisamos é estar de acordo com esta trivialidade lógica:
que as duas teorias não podem ser verdadeiras, no sentido normal de "verdadeiro",
no sentido de ser uma correta afirmação a propósito do que verdadeiramente
se passou na história. Não confundamos isso com a questão do valor social
ou psicológico das crenças. Pode ser que a crença de certa tribo indígena
- apesar de ser falsa a propósito de sua história - tenha certo valor
social, etcetera. Se o antropólogo diz "não me interessa muito saber se
a cosmologia dos Zuni, por exemplo, é verdadeira ou falsa, como relato
da história de seu povo, o que me interessa é o papel que joga no interior
da sua cultura, sua organização social, religião etc.", não há nenhum
problema. Estou de acordo. Porém, o que parece é que muitos antropólogos
não chegam a separar este relativismo metodológico sano de um relativismo cognitivo
radical.
No livro, quase não tratamos de antropologia. No entanto há uma
breve menção no epílogo (págs. 195/6), quando estamos nos interrogando
sobre as fontes do pós-modernismo: de onde surgiu, por que tem apoio nas
ciências sociais. Achamos uma das fontes no que chamamos o relativismo
"natural" nas ciências humanas. Uma certa atitude relativista é metodologicamente
natural, em particular quando se estudam os gostos e os costumes. O antropólogo
busca compreender o papel destes costumes em uma sociedade dada e considera
ruim deixar suas próprias preferências estéticas interferirem em sua pesquisa.
Da mesma maneira, quando o antropólogo estuda certos aspectos cognitivos,
por exemplo, a maneira como as crenças cosmológicas de uma cultura funcionam
no quadro de sua organização social, este não se interessa principalmente
em saber se essas crenças são verdadeiras ou falsas. Porém essa atitude
metodológica razoável levou, muitas vezes, devido a confusões de linguagem e de pensamento,
a um relativismo cognitivo radical, afirmando que a veracidade ou falsidade
de uma afirmação é "relativa a uma cultura". Isso equivale a confundir
os papéis psicológicos e sociais de um certo sistema de pensamento com
seu valor cognitivo, e, com isso, ignorar a força dos argumentos empíricos
que podem ser usados a favor de um sistema ou de outro. Queremos, portanto,
distinguir o relativismo metodológico natural e razoável dos antropólogos
do relativismo cognitivo radical, que consideramos injustificável.
Alessandra/Rose: A partir do momento em que o sr. afirma que
o saber científico está mais próximo da verdade, enquanto o saber local
não passa de crença, de um sistema periférico, o sr. propõe uma hierarquização
de saberes, colocando o científico em um patamar privilegiado. Será que
essa hierarquização não tem conseqüências éticas e políticas, por exemplo,
numa situação de confronto entre culturas locais e aquelas que detém o
saber científico?
Alan Sokal: Existe uma hierarquização de crenças, queiramos ou não: algumas
são mais verdadeiras que outras, pois correspondem melhor aos os fatos
do mundo externo. Mas isso não tem as conseqüências políticas que você
teme. É importante ressaltar a distinção entre fatos e valores. Conhecer
a verdade a respeito de um fato - por exemplo, a origem dos povos da América
- não resolve os problemas éticos e políticos. Seria completamente
coerente dizer que a cosmologia dessas tribos indígenas, a respeito de
sua origem, por exemplo, é falsa e, mesmo assim, que elas têm direito
às suas terras. Não tem nenhuma relação lógica.
Alessandra/Rose: Mas não é isso o que ocorre na prática. Historicamente,
a antropologia nasce dos interesses do imperialismo europeu, que entendia
como necessário conhecer para melhor colonizar. Em muitos casos, ainda
hoje, a disciplina se depara com situações em que a linha que separa ciência,
ética e política é muito tênue...
Alan Sokal: O que estou dizendo é que é um erro tirar dessa hierarquia
de saberes implicações políticas. Se há implicações políticas, é por um
erro de pensamento de alguém. Podemos criticar esse erro. Sim, é uma verdade
histórica que a antropologia nasceu em parte como arma do imperialismo
europeu. Mas do mesmo modo, a teoria de Darwin da evolução por seleção
natural estava historicamente ligada ao darwinismo social - havia muitas
pessoas partidárias de ambas as teorias simultaneamente. No entanto, não
há uma relação lógica entre as duas teorias e creio que temos boas provas
da veracidade da teoria darwiniana da evolução biológica, enquanto o darwinismo
social não é uma boa teoria social. Infelizmente, há muitos
laços sociológicos entre pares de idéias que não são justificados logicamente.
Creio que em vez de criticar uma idéia correta porque está ligada socialmente
com outra idéia incorreta, convém criticar o laço. Então, o fato de uma
tribo ter uma cosmologia equivocada não justifica tratá-la mal. Não esqueçamos
que 47% dos norte-americanos têm também uma cosmologia equivocada, acreditando
na veracidade literal do relato histórico da Bíblia.
Alessandra/Rose: Afirmar que uma cosmologia é "equivocada"
não é uma avaliação a partir de nossos valores e conhecimentos do mundo?
Em O pensamento selvagem, o antropólogo Claude Lévi-Strauss mostra a maneira
pela qual o pensamento "primitivo" se baseia, assim como o científico,
em operações como observação empírica, comparação e classificação, e não,
como imaginado pelo senso comum, em superstição e arbitrariedades.
Alan Sokal: Podem haver crenças equivocadas, mas racionais e baseadas
na observação etcetera. Nós, cientistas, também nos equivocamos. Às
vezes, temos informações parciais, somente uma parte das provas, que nos
levam a um resultado incorreto. Da mesma maneira, uma tribo primitiva
poderia estar atuando de acordo com todos os melhores critérios da racionalidade
científica moderna e equivocar-se. Não é criticá-la, dizer que se equivoca.
Nós nos equivocamos sempre. Como disse, nós, por vários motivos históricos,
dispomos de informações das quais algumas outras culturas - ou nossa própria,
no passado - não dispõem. Como iria saber que a água é feita de átomos?
Observando-a, ela me parece um fluido contínuo. Unicamente agora, no último
século, dispomos de boas razões para crer que é feita de átomos. Quero
insistir na diferença entre verdade e justificação. Entendo que os antropólogos
se interessam pelo respeito a outras culturas. Estou completamente de
acordo. Entendo também que o respeito está ligado à questão da justificação,
porque este implica que são seres humanos, com as mesmas faculdades mentais
que as nossas, que nós não somos mais inteligentes que eles, por isso
queremos respeitar suas diferenças. Estou completamente disposto a reconhecer
que em muitos casos eles tenham feito inferências razoáveis e até descoberto
verdades que nós não conhecíamos. Se vivem em uma selva, são especialistas
na flora e na fauna desta selva. Ultimamente, tenho lido histórias de
biólogos que estão investigando as crenças médicas tradicionais de certas
tribos e, às vezes, descobrem que as plantas têm realmente os efeitos
atribuídos pelo grupo; e até chegam a isolar os componentes químicos,
desenvolvendo novos medicamentos. Em qualquer caso, não há nenhum conflito em reconhecer
que muitas das inferências de uma cultura podem ser justificadas a respeito
de suas informações e, não obstante, equivocadas.
Alessandra/Rose: Uma das principais críticas dirigidas ao livro
que ouvimos no seminário "Visões de ciência" por parte dos especialistas
em ciências humanas foi o que denominaram o uso de um "truque retórico":
vocês partiriam da constatação de erros (no uso de conceitos matemáticos
e físicos) em partes isoladas de algumas obras, e teriam colocado em suspeição
a obra como um todo, sem levar em conta seu contexto. Como vocês respondem
a esta crítica?
Alan Sokal: Procuramos ser o mais claros possíveis no livro, e em tudo
o que dissemos e escrevemos depois, a propósito da lógica de nosso argumento,
que, na parte das "imposturas" - e não naquela que se refere ao relativismo
- é a seguinte: examinamos a parte da obra de Lacan, Deleuze, Baudrillard
etcetera que trata das ciências físicas e matemáticas, os ramos que nós
conhecemos bem. E constatamos que nessa parte de suas obras - que não
é uma enorme parte, mas, tampouco, insignificativa - há graves abusos.
Não se trata de meros erros, mas de graves incompetências ao escrever
supostas profundidades a propósito de assuntos que eles não conhecem ou
não entendem quase nada, ou de desonestidade intelectual. (Não pretendemos
descobrir se se trata de incompetência ou desonestidade intelectual: para
isso teríamos que entrar na mente desses autores, o que não é nosso propósito.)
Creio que quando a grave incompetência ou a desonestidade intelectual
é descoberta em parte do trabalho de alguém, é natural querer estudar
de forma mais crítica o resto dessa obra. Não quer dizer pré-julgar o
resultado da análise, mas sim, lê-la com olho mais crítico, sem deixar-se
influenciar pela aura de profundidade que recobre estes senhores. Tudo
o que queremos fazer com estes autores é abrir os olhos e deixar que outros
estudem o resto de suas obras, sem o efeito da imposição.
Tomemos o exemplo
de Lacan. Ele utiliza a matemática, e constatamos que é um abuso grave.
Também utiliza muito a lingüística. Seria interessante saber se esse uso
é razoável, ou se é também um abuso. Nós não somos lingüistas, não somos
competentes para levar a cabo esse trabalho, mas nós gostaríamos de abrir
um debate. Como físicos e matemáticos, tínhamos uma obrigação moral de
tornar público o dossiê e explicar para o público não-científico do que
se trata e porquê são graves abusos. Tenho que dizer honestamente que
colocar as obras em suspeição é nosso propósito. Escrevemos o livro não
somente para assinalar alguns abusos. Para dizer a verdade, suspeitamos
que talvez no resto de suas obras existam outros problemas. Talvez não
abusos da mesma gravidade, ou talvez sim. Talvez existam idéias interessantes,
mas menos profundas do que se pensa.
Alessandra/Rose: No livro, os senhores afirmam duvidar da "existência
de verdades profundas" nos textos que estão sendo discutidos (página 18
da edição francesa). Essa afirmação não seria uma forma de suspeição de
toda a obra baseada na constatação de alguns erros específicos?
Alan Sokal: Não. O contexto dessa afirmação é uma objeção freqüentemente
feita ao nosso argumento: "vocês admitem que não entendem todo o trabalho
psicanalítico de Lacan. Como podem julgar a parte matemática sem entender
o todo? Não poderia ser uma obra profunda que vocês simplesmente não teriam
compreendido?" Temos uma resposta. Esses autores utilizaram a matemática
sem explicar a pertinência dessa utilização, sem explicar ao leitor não-científico
o conteúdo dessas idéias matemáticas. Usam as partes mais complicadas
e rebuscadas da matemática, que quase não são utilizadas nem na física,
e que, de repente, tornam-se milagrosamente úteis na psicanálise ou na
análise da linguagem poética. Respondemos que, sim, há critérios que se
podem buscar para julgar a pertinência de partes da obra, ainda que sem
compreender todo o trabalho de Lacan. Poder-se-ia pensar que esses autores
expressam de maneira desastrada verdades profundas a respeito da condição
humana. Responderíamos que a complexidade das idéias se perde quando são
explicadas por termos científicos mal digeridos e utilizados fora de contexto.
Quanto à dúvida com relação à existência de verdades profundas a que nos
referimos no livro, ela diz respeito apenas aos trechos - que no livro
foram chamados de "textos"
- que citamos, não à obra, ou aos artigos como
um todo. Com relação a Lacan, sou bastante cético quanto às suas obras
que contêm mais palavreado que conteúdo. Talvez as obras mais antigas
tenham intuições interessantes sobre o ser humano, sobre psicologia. Mas
eu não sou especialista em Lacan. Estou falando unicamente dos trechos
citados no livro.
Alessandra/Rose: O professor Mauro Barbosa de Almeida defendeu
no seminário a prática de uma certa "anarquia metafórica", ou seja, uma
liberdade no uso de conceitos das ciências exatas por filósofos e cientistas
sociais, a medida que estes conceitos pareçam interessantes para elucidar
ou ilustrar algumas questões colocadas por suas pesquisas. O que o sr.
acha dessa posição?
Alan Sokal: Em primeiro lugar, o objetivo de uma metáfora é geralmente
esclarecer algo, relacionando um fato menos familiar a outro mais familiar.
Não entendo o sentido do uso de idéias de mecânica quântica para esclarecer
debates em antropologia. Segundo: se alguém quer usar idéias de outro
campo para inspirar-se metaforicamente não vejo nenhum problema. Pode
até usar seu mal-entendido a propósito do outro campo para inspirar-se.
Alguém poderia chegar a ter uma idéia interessante em antropologia a partir
de um mal-entendido sobre a teoria da relatividade, de mecânica quântica
etcetera. A inspiração pode vir de qualquer campo: física, um mal-entendido
sobre física, poesia, maconha, ou o que seja. Mas essa inspiração não
serve para justificar sua idéia. Uma vez concebida, deve-se justificá-la
com raciocínios a propósito do campo que pretende estudar. Estou fazendo
a distinção bastante clássica em filosofia da ciência entre contexto de
descobrimento e contexto de justificação. No contexto do descobrimento
tudo é lícito: indução, dedução e também alucinação. Mas insisto que o fato
de ter uma inspiração a partir da física não tem nenhum valor demonstrativo.
Depois, é preciso justificar suas idéias antropológicas com raciocínios
antropológicos.
Alessandra/Rose: Os senhores propõem no livro uma crítica ao
que denominam "pensamento pós-moderno". Mas sabemos que não existe um
consenso a respeito do que seja o pós-modernismo. Ao fazer uma afirmação
generalizante, não se corre o risco de julgar precipitadamente autores
com diferentes atuações reunidos sob um mesmo rótulo?
Alan Sokal: Sabemos que há diferentes entendimentos sobre o que seja o
pós-moderno. No livro, já na primeira página, nós o definimos como uma
corrente intelectual caracterizada pelo rechaço mais ou menos explícito
à tradição racionalista do Iluminismo, por elaborações teóricas independentes
de todo o teste empírico e pelo relativismo cognitivo e cultural que trata
a ciência como uma narração ou construção social como quaisquer outras.
Ademais não pretendemos fazer uma crítica global do pós-modernismo, mas
só tratar de dois aspectos: o abuso do jargão científico e o relativismo
epistêmico.
Alessandra/Rose: Como o sr. avalia, após a repercussão do livro
e do artigo, juntamente com as palestras e seminários nos diversos meios
acadêmicos, a possibilidade do diálogo entre o que vocês chamam "as duas
culturas", ou seja, as ciências humanas e as exatas?
Alan Sokal: O debate em torno da paródia e do livro foi um enorme provocador
de diálogo entre as ciências humanas, naturais e a filosofia. Meu objetivo
não era convencer os que já estavam convencidos. Não queria falar apenas
a físicos, mas a colegas das ciências sociais, filosofia, literatura.
Isso acabou acontecendo em simpósios realizados em mais de quinze universidades
nos EUA e no exterior. A paródia provocou uma aproximação entre as diversas
disciplinas. Nos demos conta de que havia discrepâncias significativas
nem sempre corporativas. Há também discrepâncias filosóficas dentro das
ciências sociais. Nem todos os antropólogos são relativistas cognitivos
e, muito menos, os historiadores são pós-modernos.
Alessandra/Rose: Como o sr. sentiu a recepção de seu livro
e desse debate aqui no meio acadêmico brasileiro?
Alan Sokal: No Brasil, as únicas referências que tenho são esse seminário
de dois dias aqui na USP e uma conferência no Rio de Janeiro. Creio que
houve interesse, mesmo tendo as pessoas diferentes pontos de vista. O
seminário tocou em diversos pontos que nem sempre têm a ver diretamente
com o livro e isso foi importante, pois o livro foi o ponto de partida
para o debate de questões de mútuo interesse.
Alessandra/Rose: A partir desse diálogo com cientistas sociais,
teóricos da literatura e filósofo, os senhores vislumbram alguma mudança
no livro?
Alan Sokal: Sim, incorporamos já na versão inglesa do livro - que será
a base para as versões em português e espanhol - algumas questões colocadas
nos debates. Aproveitamos as objeções que nos fizeram para esclarecer
nossos pontos de vista, por exemplo no item "Sim, Mas..." [que responde
às possíveis objeções ao argumento dos autores, na introdução (págs. 16-22)].
Além disso, corrigimos pequenos erros, incorporamos algumas críticas feitas
por partidários de Popper e de Quine, e também ressaltamos no prefácio
do livro a existência de "dois livros" distintos - um sobre os abusos
da linguagem científica, outro sobre o relativismo científico -, que devem
ser avaliados separadamente, e que a relação entre os dois é sociológica
e não principalmente lógica. Fizemos muitas modificações, mas não alteramos
as linhas gerais do argumento.
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